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Todo dia é dia de índio! (Robson Max de Oliveira Souza)

Aqui na Vila e no Brasil, mês de Abril é o mês do Índio.

Em alguns lugares, principalmente no meio acadêmico, são promovidos encontros e seminários com esta temática. Neste mês participamos do encontro de uma semana na PUC Goiás (Pontifícia Universidade Católica de Goiás), academia onde me graduei em Antropologia.

No terreiro de Umbanda que dirijo com minha irmã, a zeladora (1) do Terreiro, foi mês da Festa de Caboclos, ou Kaá-boco “aquele que vem das matas”.

Na dimensão cultural, tivemos as rodas de “Porancê Poranga” (2), que são as tardes de vivência cultural indígena. Com cantos, contos, brincadeiras, culinária, pintura corporal, trançados e tecelagem, adornos, instrumentos musicais e outras oficinas em temática indígena.

Na busca pelo respeito às diferenças, pela quebra de preconceitos e discriminações, construímos e demolimos idéias fechadas e cristalizadas do que é “ser-índio”.

Quero colocar brevemente aqui dois aspectos deste mutirão de construção identitária e humana, a qual estamos envolvidos e militantes: o cultural e o religioso. Estas duas dimensões são geradas e geradoras, tendo suas fronteiras muito tênues. Mas nos preocupamos aqui na Vila, em procurar e reafirmar estas fronteiras, para que a liberdade religiosa da criança e adolescente seja sempre resguardada. Somos contra o proselitismo religioso e por que não dizer, também contra o proselitismo cultural. Temos vários exemplos no mundo atual e na história, dos danos que esse proselitismo pode causar à humanidade, ou melhor às “humanidades”.

Como em tudo na Vila, esse olhar entre culturas só pode ser apurado pelos diálogos interculturais. É necessário esforço e disponibilidade interior para que isto aconteça. Mas é inquestionável o valor deste caminho.

No Brasil, para muitos, índios e quilombolas (comunidades remanescentes de antigos grupos de negros escravizados fugidos) são entrave ao progresso econômico da louca política desenvolvimentista, para outros a presença teimosa e resistente deles é a garantia de saída para os problemas ecológicos e éticos pelos quais passa na modernidade, todo o planeta.

Apresentar a história das sociedades indígenas, dos seus encontros e desencontros com a sociedade não-índia-ocidental-cristã é mostrar uma história de genocídio, com o massacre sobre os corpos, e de etnocídio, com o massacre das almas. Chamo de “almas” às culturas, feita de subjetividades, visões de mundo e modos de ser e se relacionar com os outros e com a natureza. Essa alma é feita também pela materialidade. É concreta e também tangível. Cultura é gerada no cotidiano, na sobrevivência física e na vida psíquica, afetiva e espiritual.

Há uma história de séculos de perseguição e maus-tratos, de expulsão e inviabilização das culturas nativas pelo roubo de terras e de sistemas simbólicos. Por outro lado, há uma brava história de resistência, de afirmação de identidade, de permanência e de continuidades, pelos grupos indígenas. Em alguns grupos vê-se até um crescimento demográfico. Há ainda o apoderamento de instrumentos ocidentais como, tecnologias, conhecimentos jurídicos e acadêmicos por parte dos indígenas na defesa de seus direitos.

As “traduções” culturais inevitáveis, e às vezes necessárias, fazem parte desta história de negociações e estratégias e ao mesmo tempo partem do princípio do dinamismo, intrínseco à cultura. Os Índios não são um “resíduo arqueológico” e nem um estorvo ao desenvolvimento civilizatório – mas fica a pergunta: que civilização?

É tempo de se firmar um ethos planetário. E os povos originais têm uma enorme contribuição a dar.

Nossa herança indígena

“O que devemos aos Índios”

Entre a distância cultural que separava o colonizador, do habitante nativo do que se chamou Brasil – nascemos nós. Segundo o antropólogo Darci Ribeiro – o povo novo, o povo Brasileiro.

O fato é que somos frutos desses encontros e desencontros. Mais do que vocábulos assumidos pela língua portuguesa/brasileira, uso e costumes agrícolas, e etc., herdamos a nós mesmos!

Esse “lastro” aborígene da cultura brasileira, é conservado muito no modo de ser do interiorano, por exemplo. O que nos familiariza, o mais importante hoje, acreditamos para o mundo e suas urgências, é a visão de mundo diferente do mundo ocidental.

Não queremos romantizar, ou idealizar “o índio”, numa visão moralista dele, mas além de vencer nossa esquizofrenia de base (nosso problema com o espelho), acreditamos ser importante fornecer na educação de nossas crianças essa visão diferenciada de mundo. Num mundo de massificação é importante propor as singularidades e o respeito a elas.

Objetivos

O que queremos com o “Porancê Poranga” (projeto da Vila Esperança) (2) é dar estímulos às crianças, para que leiam a história, e através dela, leiam a própria história – como produzidos e produtores da história.

Tenham pelo lúdico, uma Vivência da cultura outra. E nem tão outra assim, já que são culturas constitutivas da nossa (ou o que chamamos como nossa, hoje). O grande desafio e prazer é exercitar o olhar para o outro, um exercício antropológico de humanidade!

Aí entram os índios, os negros, os gordos, os homossexuais, os deficientes, os fora-do-padrão.

No “Terreiro” fizemos a festa de Caboclo.

Este é o aspecto religioso, do qual falarei um pouco agora.

Os povos indígenas tem sido objeto de inúmeras representações por parte da sociedade brasileira. Longe de ser um todo uniforme, como quer parecer a idéia de identidade nacional, ou de “democracia racial”.

O índio povoa o imaginário nacional – há o índio dos romances literários, há o “bom”, e o “mau” selvagem, da elite nacional, há o índio folclorizado do senso comum e das escolas de samba e há também o universo mítico e religioso das religiões afro-brasileiras e de outros cultos como o Toré, a Pajelanca, o Catimbó (3) – é o “índio” que “baixa” nos terreiros, nas festas de Caboclo.

Nos caboclos dos terreiros de Candomblé Angola e nos rituais de Umbanda, aparecem os nossos ancestrais, os nossos heróis com rosto indígena.

O caboclo é o índio reinterpretado, é mítico. Ele pertence às tribos espirituais. Na manifestação, ele traz rudimentos de sua língua, seus costumes e gostos, mas ele não é mais o mesmo – ele é habitante de Aruanda, de Ajucá, da Jurema (4), ou de outra tribo-cidade sagrada.

Apesar de diluída a sua identidade histórica, ele é “vivo”, na afirmação do seu “ser índio”. Sua postura é de luta, de força, de dignidade e comando. É a visão do resistente, daquele que resistiu e pede aos consulentes a mesma resistência diante das dificuldades, dos conflitos, armadilhas e sofrimentos da vida.

Caboclo é rei, é detentor dos mistérios das matas e de seus reinos, onde sabe caminhar, conhecedor que é dos caminhos, dos perigos e dos encantos. O caboclo, guia espiritual, que enxerga além e sabe ajudar os homens a localizar o mal tem o recurso das matas e ervas como remédios para o corpo e para o espírito. Considero também como remédio a presença dos caboclos nos terreiros como legítimos donos da terra, que ao ganharem vida no terreiro declaram os índios como “vivos” e agentes de vida.

Aos caboclos, o povo conta seus sofrimentos e desejos, pede conselhos e consolo. Faz isso de maneira direta. Diferente da aproximação aos Orixás africanos, onde é forte o poder de intermediação do Pai ou Mãe-de-Santo.

A mitificação do “índio” como caboclo nos terreiros passa também pela história do contato entre índios e africanos, por suas alianças e união nos tempos da perseguição e escravidão.

São os donos da terra, pela qual lutaram e morreram e que estabeleceram alianças com os outros aflitos da história. Os Caboclos nos ensinam o respeito às dimensões solidárias da vida. Respeito ao outro, respeito a si, respeito ao mistério, respeito à natureza. Eles aparecem como guardiões do equilíbrio entre o sagrado e o cotidiano, divindades e humanidades. Aí reside a beleza de sua imagem colocada para o culto nos altares das religiões afro-brasileiras. As aldeias de hoje são montadas e reinventadas no interior, e nas cidades, centros e periferias urbanas e se vestem de matas para a chegada de seus Caboclos.

Essa imagem é geralmente associada aos “índios-de-pena” como aqueles vindo das florestas, mas há ainda a figura dos Boiadeiros dos campos e sertões, e dos quais gostaria de falar numa próxima oportunidade.

“Xeto, marromba, xeto!

Xetuá!” (5)

(1)  – Zeladora – pessoa responsável que cuida do terreiro e dos filhos

(2)  – Porancê Poranga – em língua Tupi significa “Dança Bonita”. Assim chamamos as vivências culturais indígenas da Vila Esperança

(3)  – Toré, Pajelança, Catimbó – religiões brasileiras de cultos de caboclo, de várias regiões do Brasil

(4) – Aruanda, Ajucá, Jurema – reinos e cidades do plano espiritual

(5)  – Saudação aos Caboclos Boiadeiros

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