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A EDUCAÇÃO PLURICULTURAL NA VILA ESPERANÇA com Sheylane Brandão

Ocorreu no dia 19/05/17 no Espaço Cultural Vila Esperança, um encontro com Sheylane Nunes Brandão, mestra do INSTITUTO DE PSICOLOGIA – Programa de Processos de Desenvolvimento Humano e Saúde, da UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA (UNB), onde ela apresentou à comunidade educativa a sua dissertação de mestrado: A EDUCAÇÃO PLURICULTURAL NA VILA ESPERANÇA: CAMINHOS, TRAMAS E DIÁLOGOS DO TORNAR-SE SUJEITO. A Dissertação, sob orientação da pós-doutora Lúcia Helena Cavasin Zabotto Pulino é fruto de mais de três meses de trabalho de campo diário com as crianças da Escola Pluricultural Odé Kayodê no Espaço Cultural Vila Esperança.

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Flores, cores, música, crianças, adultos, professoras e professores, demais trabalhadoras e trabalhadores da Vila, comunidade externa, mães… assim esteve o Quilombo na manhã de sexta, 19 de maio, para receber a devolutiva da psicológa Sheylane Brandão que realizou uma pesquisa etnografica com as crianças da Vila Esperança, na realização de sua dissertação de mestrado para a Universidade de Brasília.
Na abertura Robson Max, presidente da Vila Esperança, falou que este era um dia muito importante: “Quando as pessoas de fora decidem estudar como nós aqui na Vila aprendemos e ensinamos isso é motivo de alegria. O fruto de trabalhos como o seu devolvem pra gente o nosso dia a dia com um outro olhar. Isso dá forças pra gente se rever e continuar”.
Kamilla, aluna do quinto ano da Escola Pluricultural Odé Kayodê, disse que Sheylane estava ali para “falar tudo o que aprendeu com a gente.”
Sheylane disse que era assim mesmo. Que o tempo que passou com as crianças era de aprendizado e de tentativa de compreender as milhares de informações que chegavam pelos sentidos, todos eles. Com uma linguagem bem acessível às crianças, Sheylane contou como foi o percurso desde sua escolha do tema, as conversas com a orientadora e como foi passar um tempo literalmente vivendo com as crianças da Vila Esperança.

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Quando a gente é criança a gente gosta de fazer pergunta. A gente pergunta, pergunta… Às vezes os adultos se cansam e já começam: “Para com essa perguntação! Que coisa chata!” Aí a gente vai crescendo, vai pra escola, e lá também a gente aprende que não pode ficar perguntando o tempo todo. Daí a gente cresce um pouco mais, e um pouco mais, e vai para uma outra escola chamada Universidade ou Academia (não é academia de ginástica, é tipo uma academia de fazer exercício com os pensamentos), e aí dizem pra gente fazer perguntas – esse é um exercício importante na academia -, e precisam ser boas perguntas. Mas aí a gente já tá meio destreinada porque ensinaram antes que não era pra perguntar.

Deve ser por isso que chama academia, pra gente retreinar o que desaprendeu nas outras escolas, né? A gente faz perguntas para fazer trabalhos sobre essas perguntas, trabalhos especiais, chamados de mestrado ou doutorado. É assim: você pergunta uma coisa para pesquisar sobre ela, e é chamado de pesquisador. Mas, quando você é só criança perguntando, as pessoas não te chamam de pesquisador, no máximo chamam de curiosa, às vezes de chata. Pois bem, fui fazer o tal mestrado e sabia que precisava de uma boa pergunta. A parte legal, é que, quando a gente vai fazer um mestrado, tem uma pessoa que vai ajudar a gente a fazer as perguntas, uma espécie de “professora invertida” que não ensina respostas, ajuda a fazer as perguntas, mas essa professora tem um nome especial, que é orientadora, a pessoa que cuida das perguntas. É um nome engraçado, parece que as perguntas estão todas desorientas pelo espaço e a orientadora vai lá e orienta as perguntas… Mas não é nada disso, ela orienta a gente, que quer fazer pergunta – às vezes a gente tá um pouco desorientado. Daí, eu encontrei a minha orientadora, que se chama Lúcia, que é uma moça velhinha e, para minha sorte, um pouco maluca também, e ela gosta muito de fazer perguntas e ela me disse:

– Muito bem Sheylane, qual é a pergunta que a gente vai estudar? – e eu disse:

– Não sei. – Daí ela falou:

– Muito bem! Às vezes é importante mesmo não saber, tão bonito não saber, né? – Eu disse que ela era um pouco maluca. Então ela falou: – Bem, pense numa pergunta muito boa e bem legal pra gente estudar e construir um objetivo.

Objetivo??? É assim, depois da pergunta vem o objetivo, como se fosse uma missão a ser cumprida, é tipo a pergunta mesmo, mas com uma roupinha mais arrumada. É meio confuso. Bem, vamos voltar para a parte das perguntas. Então eu fiquei pensando:

– Hum… uma pergunta bem legal (e tinha que ser uma pergunta bem difícil também, para parecer inteligente, na academia as pessoas parecem todas bem inteligentes…). Já sei!! Uma boa pergunta: “Se a força gravitacional do planeta Terra está relacionada com a massa/peso do planeta (quanto maior a massa, maior a força gravitacional), e se tá nascendo tanta gente no mundo, que também pesa… Será que o peso das 7 bilhões de pessoas altera a força gravitacional do planeta?!” Ah… essa é uma boa pergunta!!

Vou contar pra Lúcia… Não! Não pode ser esse tipo de pergunta, tem que ser uma pergunta de psicologia. É que é assim: na academia as coisas não se misturam muito, é tudo bem separadinho, tem gente que estuda coisas de planetas, tem gente que estuda uns números complicados, tem quem que estuda só os animais, outras, só as leis, e tem gente que estuda a cabeça das pessoas e o jeito das pessoas serem, isso é mais ou menos a psicologia. Tudo separado em caixinhas, é um pouco que nem quando a gente é criança e coloca, sem querer, os sapatos na caixa de brinquedos e a mãe da gente diz:

– Isso por acaso é brinquedo pra tá aqui dentro? – Então, a academia é um pouco assim: tudo tem um lugar certo e misturar umas coisas pode dar um pouco de problema. Então tinha que ser outra pergunta, não sobre a gravidade da Terra e o peso das pessoas, mas sobre as pessoas. Daí eu pensei:

– Que difícil, né? Existem pessoas de tantos jeitos… Já sei! Tá, existem pessoas de muitos jeitos, mas alguns jeitos são mais bem vistos, são tipo “melhores” que outros, e a gente até aprende isso na escola! E às vezes os professores nem sabem que estão ensinando que uns jeitos de ser gente são melhores que outros jeitos de ser gente, sabe…? Isso eu sei. Na escola a gente aprende que as coisas de branco, por exemplo, da Europa, são melhores. Bom isso eu já sei, mas preciso de uma pergunta. Hum… E se existisse um lugar, tipo uma escola, que falasse dessas coisas de ser gente de uma outra forma, de como as pessoas são diferentes e é importante ser diferente, de verdade!? Como seria? Legal! Gostei da pergunta, mas, pera… preciso escrever isso de um jeito acadêmico. Aí escrevi assim: “Como um espaço escolar que se pauta pela pluralidade focando em aspectos da cultura negra e indígena (por exemplo), se distanciando de práticas hegemônicas de educação, contribui no processo de desenvolvimento das crianças, em especial, crianças não brancas?”

Daí levei essa pergunta para minha orientadora e ela falou.

– Ah! muito bem… – E eu quis logo saber:

– Como será que a gente consegue essa resposta? Já sei! Vamos perguntar para as crianças! – Ela disse:

– Com certeza as crianças são boas respondedoras de perguntas. – Aí eu pensei: “mas pra quais crianças?” e logo lembrei de um lugar que eu conhecia lá em Goiás Velho:

– Ah Já sei! As crianças da Vila Esperança, lá é um lugar meio assim, que gosta de gente de todos os jeitos. Na Vila tem inclusive uma escola que se chama Escola Pluricultural Odé Kayodê, que significa caçador de alegria. Mas como eu vou fazer essa pergunta, assim, para as crianças? “oi, tudo bem? Me diz, por favor, como os espaços plurais contribuiem na sua contituição identitária, no seu desenvolvimento?” Eu pensei: “Não, Sheylane, você é uma pesquisadora, não uma perguntadora, pesquisadoras utilizam métodos”.

Já sabia um pouco disso, conhecia alguns métodos, várias coisas interessantes, mas não estava muito contente, queria um tipo de método que fosse mais ou menos assim: ficar junto das pessoas e tentar entender o mundo do jeito que elas entendem, ou sentir o mundo um pouquinho do jeito que elas sentem, tentar olhar o mundo do jeito que elas olham. Daí descobri que isso se chama Etnografia. É um pouco difícil, porque a gente precisa mudar a gente mesmo de lugar, tipo assim: se eu quero ver o mundo que nem uma cobra, eu teria que me rastejar que nem uma cobra, se eu quisesse ver o mundo como uma pessoa cega vê, eu teria que ficar de olhos fechados, todo o tempo, fazendo as coisas que ela faz, mais ou menos isso.

É um jeito de fazer pesquisa que, na antropologia, as pessoas usam muito, meio eles, da antropologia, que inventaram e gostam muito dela, da Etnografia. Mas poderia se chamar “método metido”, porque a gente se mete no meio das pessoas que podem responder nossas perguntas, mas não chama “método metido”, chama Etnografia, é um nome engraçado, porque parece nome de doença que dá em formiga, mas é um pouco pomposo também, porque é acadêmico, e as coisas acadêmicas gostam de ter nomes difíceis.

Então tava decidido, iria para Goiás, para a Vila Esperança, fazer uma etnografia com as crianças e tentar entender de que forma aquele lugar tão plural comparecia no processo de desenvolvimento delas. Peguei minha malinha, coloquei umas roupas, todas pretas, depois morri de calor porque tava quente pra dedel, as crianças às vezes até riam das roupas, acho que os adultos também queriam rir, mas se continham. Coloquei na mala o diário e umas canetas (o diário é um caderninho que a gente leva pra anotar tudo que vê, ouve e sente) quem faz etnografia tem que ter esse caderninho. Daí fui pra Vila me meter entre as crianças e tentar pesquisar a resposta e chegar no objetivo! Humpf! Mas, antes de chegar no objetivo, quanta coisa aconteceu… Descobri um monte de coisa. Tem uma coisa que descobri muito importante: É que, quando a gente faz uma mala para algum lugar, a gente leva o que escolheu levar e também o que nem escolheu levar. Calma, vou explicar! Um dia na Vila, quando eu tava metida com as crianças, na rádio (na vila tem uma rádio, dessas que a gente grava uns programas pra outras pessoas ouvirem onde tiverem). Daí, um dia, elas tiveram uma ideia:

– Sheylane, vamos entrevistar você na radio! Que tal? – Eu disse:

– Legal! – Aí elas começaram a fazer um bocado de perguntas: “Pra que time você torce? Você tem bichos de estimação? Você fica triste quando precisa se desfazer de uma roupa velha? Fazer tatuagem dói?” Várias perguntas. Perguntas relativamente fáceis de responder. Mas, de repente, elas perguntaram um coisa:

– “Sheylane, você tem medo de quê?” – Eu fiquei pensando, que diacho de pergunta… pergunta de pesquisador mesmo, né? E me dei conta que a gente fica adulto e nem pensa mais sobre os medos que tem, caramba! Ora, mas que pergunta difícil, dava até pra fazer um mestrado com ela… Dei uma resposta meio desengonçada e escapei, ufa! Foi aí que descobri que na minha mala eu levava medo, daí escondi ele bem no fundo, pra nem lembrar que tinha. A gente cresce e faz essas coisas.

Na pesquisa em Campo, tentei aprender junto com as crianças, me meti nas atividades, aprendi brincadeiras novas, aprendi tirar leite de vaca, aprendi que tem a folha de uma árvore que se chama lixadeira e que lixa de verdade um pedaço de madeira. Aprendi um monte de história sobre Goiás, aprendi a fazer rabiola de pipa. Aprendi que Sacy nasce no bambuzal. Aprendi que o Axé é coisa séria. Aprendi que os Orixas são entidades relacionadas aos quatro elementos da Natureza, (água, terra, fogo e ar) ou mais ou menos, já que as crianças não conseguiram chegar a um consenso sobre se o fogo era ou não elemento da natureza, já que a gente pode fazer ele. Minha mala voltou cheia!

Tentando encontrar as respostas da pesquisa, fui também descobrindo que, talvez, as respostas fossem outras perguntas, seria um tipo uma charada? Pensei.

– Será que é coisa do Sacy?, como dizem na Vila… – O Sacy é uma criaturinha muito travessa, que tira as coisas do lugar, faz redemoinho pra mexer no juízo da gente… Mas eu já tava há dias lá na Vila, que é um lugar cheio de Sacys, as crianças me contavam várias histórias, os adultos também. Já tava gostando tanto do Sacy… Na Vila, descobri que o Sacy tira tudo de lugar, às vezes, pra lembrar a gente de quem a gente é. Não é possível que ele teria feito travessura com as respostas que eu tava procurando… Ainda não sei se foi o Sacy, ou não, mas um monte de pergunta foi aparecendo no caminho, resposta, que é bom, NADA.

Já tinha passado muuitos dias na Vila, exatamente 26, tava na hora de começar a escrever o resultado da pesquisa, isso na academia tem um nome: se chama dissertação. Tinha feito todas as anotações possíveis no caderninho, que chama diário de campo, tinha até gravado umas coisas em áudio, porque a Vila é um lugar tão cheio de coisa acontecendo, que às vezes era impossível anotar, aí eu ligava o gravador. Daí peguei todas as coisas que tinha anotado, gravado, ouvi, li, ouvi e li de novo, reescrevi…

Teve uma vez que, eu lembrava de uma coisa que eu tinha gravado, que era muito importante mesmo, era a tradução de uma música em Yorubá que cantam na Vila, uma música que mostrava como a gente é feito de outras gentes. Muito interessante, o Yoruba é uma língua muito importante para alguns povos africanos e carrega uma memória muito bonita, ancestral, de resistência e luta. Daí procurei a tradução em todos os áudios, transcrevi tudo (transcrever é quando a gente faz o inverso do que a gente faz com os livros, que a gente lê o que tá escrito. Transcrever e escrever o que a gente escuta do mesmo jeitinho). Mas não achei a tradução em lugar nenhum. Pensei: “Isso é coisa de Sacy!”, achei que tinha perdido pra sempre, mas aí, quando eu já tinha desistido, o Sacy me devolveu. Que alívio!

Bom, comecei a colocar todas aquelas coisas que eu tinha visto e vivido na Vila no papel, separei umas coisas, como a gente aprende a fazer na academia, que se chamam “categorias analíticas”, que são, basicamente, coisas que chamam mais a nossa atenção, pra gente olha para elas com mais curiosidade e cuidado do que para qualquer outra coisa. Das coisas que eu vi na Vila, as categorias analíticas que eu separei para olhar foram: comunalidade e partilha; a brincadeira infantil, identidade e estética racial, gênero e sexualidade, memória e religiosidade. Coisas que eu achei que me ajudariam a encontrar alguma resposta. Então fui procurar se algum jeito de olhar para aquelas coisas todas me ajudaria a enxergar a resposta, tipo como um óculos mesmo. Peguei na mala uns óculos, que na academia se chamam teorias, tem de vários jeitos, teorias psicanalíticas, sócio-históricas, umas mais gordas outras mais magras, a maioria desses óculos é europeu. Eu tinha eles guardados já há um tempo, que ganhei da psicologia, e fui experimentando: bem, talvez esse aqui me ajude um pouco a enxergar… Não! Nossa. Talvez esse, acho que tá meio velho. Esse: Hum… Mas não é possível.

Olhei pra mala e pensei, nossa até desconfiava que tinha tantos jeitos de pesar, inclusive estava esperando que eles me ajudassem a encontrar a resposta, daí me dei conta que a gente carrega uns jeitos de pensar e nem sabe o quanto eles são grandes, destrambelhados, ocupam muito espaço na mala. Achei um pouco engraçado e um tico preocupante.

Bom, deve ter algum óculos, com alguém, em algum lugar. Procurei óculos de teóricos negros, teóricos africanos, latinos, não brancos, decoloniais que me ajudassem a ver de outro jeito. Decolonial é um jeito diferente de pensar as coisas, é tipo quando todo mundo tá brincando de pega e correndo para o mesmo lugar pra se salvar e você descobre um outro caminho bem diferente pra chegar até o pique, mais perto do lugar que você tá, ou quando a gente faz sempre a mesma coisa e descobre que pode fazer diferente. Pois bem, peguei emprestado uns óculos com um monte de gente, muitos decoloniais, bonitos e tal. Foi meio difícil encontrar esses óculos, fiquei me perguntando porque eles não estão por aí na academia, como tantos outros que a gente ganha aos montes. Eita, outra pergunta! Alguns me ajudaram a olhar para as vivências etnográficas na Vila de um jeito melhor, mais confortável, e eu conseguia ver outros sentidos. Parecia mais divertido olhar com outros óculos. Alguns óculos novos até combinaram bem com uns antigos que tinha na mala, outros não.

Depois de me divertir na Vila e escrevendo a dissertação com tantos óculos diferentes, descobri que a resposta levava a mais perguntas mesmo, não era coisa de Sacy. As perguntas que ficaram no final das contas foram mais ou menos assim: “Como produzir óculos que nos ajudem a ver outros mundos possíveis, que ajudem a gente a ver as pessoas e os múltiplos jeitos de existir como eles são?” “Como produzir óculos que amplifiquem nossa visão?” “E como a psicologia pode contribuir com essa produção?”

 

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